Presenciei coisas fantásticas quando atuei na Secretaria Municipal de Educação entre 2001 e 2008. Aprendi muito, e também ri muito de algumas situações. Chegavam sempre( às vesperas), alguns ofícios solicitando algum representante do município para os cursos que aconteciam na capital baiana. Era uma viagem desconfortante e incerta financeiramente.
Um certo dia ouvi coisas que interpretei com graça, embora ela expressasse ira. Uma colega de trabalho entrou enfurecida porque foi designada a representar Ipiaú num desses cursos. Essa percepção virou uma crônica.
PARTE I- A CHEGADA
Necessarie nova, rosa choque. Foi um presente visivelmente inconfundível que fosforesce naquele ônibus acabado que pára na Rodoviária. Desce ela, Maria.... Lá vem Maria, sem a lata d’água ,mas lá vem ela. Espreguiça-se, fecha a braguilha com muita dificuldade, estica a blusa que cisma em mostrar a sua pochete natural, dá uma ajeitada no cabelo pranchado, passa no toallet, se pinta e vai pra guerra. Passarela, Estação Iguatemi e de novo no buzão. Seu corpo lateja de dor, a coluna não agüenta e a ira toma conta dos seus pensamentos. Maria pensa na volta na noite daquele mesmo dia. Pela janela do buzu viaja na paisagem urbana. Gente colorida de cabelos coloridos. Maria quer chorar, Maria deseja imensamente acertar na megasena. Maria quer ser a tal. Maria quer sair dessa vida. Maria não quer mais andar de ônibus. Maria não quer mais DESPERTAR. Maria quer se libertar. Primeira parada. Maria se informa sobre o seu destino. Tentam puxar conversa com Maria, mas ela é monossilábica no início e depois responde com mímica. A simpática velhinha emudece, porque percebe que Maria não quer papo. Maria está ligada no movimento. Celular toca... Maria atende: “Chamada a cobrar”. Filho quer saber dela. Maria continua monossilábica. Viagem estafante. Orla bonita. Mar azul e céu cinza. Maria lembra dos tempos de Saquaíra.. Maria demora e roda a cidade. Buzu errado,Circular R2.. Destino de Maria. Ela desce e o céu desaba. Penteado desarruma, roupa cola na roupa, a Necessarie é protegida. Sombrinha é carregada pelo vento. Maria se molha. Maria também desaba e deságua. Maria chora com a chuva.
PARTE II-A ESTADIA
Maria troca de roupa e se perde no encontro. Tudo corre e transcorre. Maria sacode a cabeça negativamente. As palestras são as mesmas. Maria, nada de novo adquire. Maria pensa no Shopping Novo. Maria quer ir ao tão falado Via Paris. Maria quer fazer unha, depilação e cabelo. Maria quer ficar bem, quer relaxar. Fim do encontro. Maria volta a realidade. Percebe no espelhinho de bolsa que seu cabelo está todo encolhido. Maria respira fundo e se organiza. Puxa uma mecha pra lá, passa o pente pra cá, e toma seu rumo. Caixa eletrônico e nada de dinheiro na conta. Maria quer reclamar, o estômago também. Fome, fome... dinheiro não há. Diária não entra. Bolso vazio, bucho vazio e Maria quer chorar. Adeus avenida sete, adeus bugigangas encomendadas pela filha. Maria é salva pelos trocados. Maria come. Maria bebe. Maria nem consegue engolir. Maria xinga em pensamento.
PARTE III- A VOLTA
Buzu Circular R1. Trinta minutos vagando pela cidade. Olho de Maria esbugalha diante de um corpo ensangüentado na rodovia. Maria se arrepia, lembra do filho também ensangüentado na pista um dia. Lágrima escorre no canto dos olhos. Maria respira, suspira e sente saudade de casa, da família. Maria quer chegar logo. Olha pro relógio. Quica a mão na sua bolsa nova acompanhando o embalo da batida do Olodum. Maria parece estar alegre. Integrantes da banda descem. Não há mais batuque, não há mais música. A face de Maria volta a seriedade sem serenidade. Rodoviária a vista. Maria desce, procura seu ônibus e quer chorar. Ônibus velho. Maria quer reclamar, quer ligar. Maria está esfalecida de forças. Maria sobe, se ajeita na poltrona, cheira o estofado, empurra o lixo que esta sob os seus pés, mata uma barata, abre a braguilha, toma um Olcadil, faz uma oração, fecha os olhos, pensa no capítulo da novela que perdeu, dorme a viagem toda e sonha que está no iate do Antenor Cavalcante.
PARTE IV- O RETORNO
Buzu chega na Província. Ritual repete-se. Espreguiça-se fecha a braguilha e desce. Maria ainda dopada chega em casa. Beija a família, banha-se, toma seu café, dialoga polissilabicamente e prepara-se pro trampo. Maria adentra no trabalho com cara de dragão. Não ri das piadinhas, e esbraveja. Maria está o "Cão de Calçolão." Xinga, xinga ,xinga e decreta: “Não quero sair da província sem diária. Não quero ir a capital e não poder assistir ao ensaio da Timbalada, passear no Pelourinho e gastar miúdos na avenida sete.”Exige juntamente com a diária, medicamentos para paliar as dores. Maria reclama e exclama. Maria quer ficar rica, Maria quer sair dessa vida de bate e volta pra capital. Maria segue o ciclo. Maria sobrevive porque Maria é valente, Maria é guerreira, Maria é Bonita. E já diz o poeta: “Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor, é a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”.